Quando a voz da esposa incomoda o poder

Querem que ela sorria nas fotos, esteja sempre elegante nos eventos oficiais, que prepare a casa para os jantares diplomáticos e inspire compaixão com causas inofensivas, daquelas que rendem campanha de doação de agasalhos. Mas, por favor, que não fale. Que não opine. Que não sente à mesa do poder. Que não interfira. Que seja, enfim, uma primeira-dama reborn: linda, parada, decorativa.

MACHISMO

Por Lisdeili Nobre – Portal Afirmativa

5/25/20252 min read

O Troféu Que Decidiu Pensar

Querem que ela sorria nas fotos, esteja sempre elegante nos eventos oficiais, que prepare a casa para os jantares diplomáticos e inspire compaixão com causas inofensivas, daquelas que rendem campanha de doação de agasalhos. Mas, por favor, que não fale. Que não opine. Que não sente à mesa do poder. Que não interfira. Que seja, enfim, uma primeira-dama reborn: linda, parada, decorativa.

Foi isso que a apresentadora da GloboNews sugeriu, ainda que com palavras mais cuidadosas, ao criticar a presença ativa de Janja nas reuniões e decisões do governo. Disse, em tom de lamento, que o ambiente no Palácio da Alvorada “fica mais ameno quando Janja está viajando”. A frase caiu com a sutileza de uma bomba colonial: uma mulher é um incômodo no centro da política, uma pedra no caminho dos homens que tentam governar em paz.

Mas desde quando a paz na política brasileira teve a ver com a ausência de vozes femininas? Maria Leopoldina, ainda no século XIX, assinou o decreto que declarou a Independência do Brasil antes mesmo de Dom Pedro brandir a espada às margens do Ipiranga. Darcy Vargas, Sarah Kubitschek, Ruth Cardoso — todas tiveram papéis centrais nas articulações sociais e até políticas de seus tempos, ainda que a história oficial, escrita por mãos masculinas, tenha empurrado seus nomes para os rodapés.

Janja não é diferente dessas mulheres. É socióloga formada pela Universidade Federal do Paraná, tem MBA em gestão social, trabalhou na Itaipu Binacional e passou pela Escola Superior de Guerra, onde estudou as engrenagens de uma GLO. Não é enfeite, é engrenagem. Ao lado de Lula, foi peça-chave no enfrentamento à tentativa de golpe de 8 de janeiro, articulando encontros e construindo redes. Se tivesse se calado, talvez tivessem marchado sobre o Planalto.

Querem o presidente emoldurado em isolamento e sua esposa reduzida a um papel decorativo: fonte de vitalidade, musa doméstica, moldura que reafirma a virilidade de um presidente mais velho. Janja pode ser a energia, o colo, o charme necessário — mas não pode ser estrategista, não pode articular, não pode sentar-se à mesa onde o poder real é repartido. Isso incomoda. Incomoda porque desafia um padrão antigo, patriarcal e persistente, em que mulheres mais jovens casadas com homens poderosos existem apenas para exibir a virilidade deles, como troféus vivos da sua força, jamais como parceiras de pensamento, influência ou decisão.

Essa crítica não é sobre governança, é sobre gênero. Quando um assessor opina, é técnico. Quando uma esposa opina, é mandona. Quando um homem está ao lado do presidente, é conselheiro. Quando é uma mulher, é um problema. “Lula não consegue relevar”, disse a apresentadora. Mas o que talvez ela não consiga relevar é ver uma mulher saindo do bastidor para a sala de comando.

No Brasil de hoje, ainda há quem pense que mulher não deve se meter na conversa dos homens. Mas Janja já entendeu: ou a gente fala, ou viram a chave das costas e nos colocam numa prateleira.

E ela escolheu falar.

Por Lisdeili Nobre – Portal Afirmativa